sábado, 20 de fevereiro de 2016

Descobrimos, enfim, que o Direito não é asséptico

Caiu como uma bomba no sistema jurídico brasileiro a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de decretação de prisão após decisão condenatória confirmada em segunda instância. Chamou a atenção teses como "a cada instância, a presunção vai diminuindo".

Pois bem. Confesso que em um primeiro momento cheguei a dizer para meus orientandos (que bálsamos tem sido tê-los, obrigado Antônio Machado, Daniel Dore, Cícero Ávlia, Carla Lima, Ana Paula Macario e Tamires Cosendey, pela troca de ideias) que eu não via muitos problemas processuais, porque as instâncias superiores não podem mesmo revolver provas e a taxa de absolvição é ínfima. Depois, já com ar recuperado após subir as escadas da Estácio, voltei a mim. Há, sim, problemas. Discutirei até nesta postagem brevemente.

Antes, entretanto, queria mencionar uma crítica que li sobre o Supremo. Tal crítica dizia que o Direito perderia, enfim, sua autonomia. A pergunta que me veio automaticamente à cabeça foi: que autonomia? A científica? Porque essa me parece estar ali, partiu-se de uma norma (constitucional), dentro de um quadro fático e houve uma decisão por órgão legitimado, dentro de um processo sem vícios procedimentais. Autonomia enquanto campo de jogo de disputa? Opa, descobrimos, enfim, que o Direito não é autônomo, o Direito não é asséptico. 

Sabemos que a Constituição ganhou ares de instrumento protetor contra déficits de direitos fundamentais pós Segunda Grande Guerra Mundial (achei essa locução do Streck bem bonita). Enquanto instrumento de limitação do poder e provedora de direitos fundamentais, a Constituição tem sido a armadura de resitência do Direito contra forças nefastas. A Constituição é, por sua vez, produto de forças fáticas e jurídicas (ler, sobre isso, Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto). Se forças fáticas atuam na Constituinte, não pensemos que elas não atuem nos poderes constituídos. NESTE PONTO, não vejo qualquer problema. É preciso reconhecer que há um Direito Constitucional fora das Cortes (Tushnet e Waldron, neste sentido). Vivemos, sim, em uma comunidade aberta de intérpretes da Constituição (Peter Haberle). Por isso, algumas vezes, senão muitas, um senso comum, uma moralidade positiva avançará sobre o considerado asséptico fórum de princípios do Plenário do STF. Isso é um fato da vida. O Direito é feito disso também.

O STF está envolto em uma comunidade linguagens, que tem determinado auditório ou auditórios. Por vezes, ou muitas vezes, os Ministros tratam os demais ministros e "operadores do Direito" como destinatáris de suas falas. Em outros casos, o Legislativo é o auditório; na maior parte das vezes, a Sociedade em si (afinal, suas decisões têm cada vez mais força de precedentes vinculatórios). Não há qualquer impossibilidade de haver uma fala para vários auditórios. Neste caso, o auditório deveria ter sido Legislativo e Sociedade (já explico porque). Acabou sendo "apenas" a Sociedade, ou parte desta Sociedade que tem uma "sensação" de morosidade da Justiça.

Nada obstante, a Corte trabalha com capital político. Vai variar entre sustentar teses majoritárias socialmente (agarinhando capital) e teses "contramajoritárias" (gastando esse capital) - uma explicação sensacional disso é encontrada no livro sobre Diálogos Constitucionais do amigo, professor e eterno orientador, Rodrigo Brandão. De tudo que li e vi, a Corte jogou, sim, para a Torcida. Isso não seria problemático se não fosse um detalhe.

O detalhe é que se buscou restringir uma norma REGRA de direito fundamental. Regras, na clássica formulação de Dworkin, valem ou não valem, é tudo ou nada. Sendo uma REGRA de direito fundamental, ela vale. Sendo uma questão de presunção de inocência, ela vale muito! É básico da cidadania que estejamos certos que quaisquer acusações que pairem sobre nós terão um tratamento procedimental justo, que teremos todas as ferramentas para nos defender amplamente, inclusive até a última instância. É um direito fundamental, uma regra contra arbitrios. Na também clássica nomenclatura de Dworkin: é um trunfo.


A defesa de direitos fundamentais é uma questão de princípio. Não falo aqui da acepção de princípio como mandado de otimização; princípio, aqui, está nos termos propostos por Dworkin desde o "levando os Direitos à sério", funcionando como uma exigência de justiça ou equidade; contrariamente, uma questao de política é um tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, social ou político de uma comunidade. O STF tratou a questão da presunção pela ótica da política crimnal, para responder a um anseio por "menos morosidade", um pacote de ideias comprado do senso comum, como disse. Este é o detalhe. Este é o problema. Se queremos menos morisidade, temos que tentar variações e melhorias institucionais, mas não brincar com o âmbito de proteção/aplicação de um direito fundamental.



Outro ponto que achei interessante foi uma crítica feita por Caio Paiva, em que ele aponta o discurso pautado no diálogo com o direito comparado. Em muitos Estados de encorpado nível civilizatório, a presunção é realmente tida como valor irredutível até a segunda instância. Acho um argumento interessante. Interessante, entretanto, retomo a ideia, para o diálogo da fala dos Ministros quando o Auditório é o Legislativo. Entendo que um diálogo bem realizado, uma República que mereça esse nome, precisa colocar o Legislativo no jogo. Era o caso do STF manter a presunção como está na CF/1988, mas sugerir ao Legislativo uma emenda que colocasse essa realidade do direito comparado em nossa Constituição. A objeção que o leitor pode manifestar é sobre o artigo 60, parágrafo 4o, que estabelece que não haverá emenda tendente a abolir direitos individuais, como certamente é a presunção de inocência. Note-se, entretanto, que a emenda não viria abolir esse direito; mas restringir, via emenda, parte do Direito fundamental, justificado pelo diálogo com o direito comparado (até entendo que não tocaria o núcleo do direito fundamental, respeitando a exigência teorizada por Daniel Sarmento e Cláudio P. Souza Neto). Não estou dizendo que concordo com o conteúdo disto, mas se se quer atingir este resultado, o caminho é este: via discussão política no Legislativo, via Emenda. Do contrário, o STF deixa de ser poder constituido para ser poder constituinte, com "c" minúsculo.



Enfim,descobrimos que o Direito não é asséptico. O melhor é acreditar que as discussões são bem vindas, tivemos muitas manifestações, o que nos leva a até uma possível crença na nossa religião civil, como diria Rousseau. E, ainda melhor, podemos tentar continuar acreditando na força das boas razões.